Gabriel Garcia Márquez |
O escritor: "Já não cuido de
nada, não me interesso por nada, não me preocupo por nada. Isso é o que me
preocupa", diz e ri.
O aniversário foi na terça-feira, sem
bandas nem fanfarras. Depois da festança dos 80 anos, quando, além disso, foram
celebrados os 40 anos da primeira edição de "Cem Anos de Solidão", os
25 de seu Nobel e os 55 da publicação do primeiro conto, ele tem preferido o
sossego da casa, dos filhos, netos e amigos mais amigos. O aniversário foi na
terça, mas desde o sábado anterior começaram os telefonemas dos amigos,
antecipando abraços. E ele lá, no silêncio do casarão. Este 2012 celebra outros
aniversários redondos de seu livro mais lido (só os exemplares vendidos de
"Cem Anos de Solidão" ao longo de 45 anos significam uma população
cinco vezes maior que a de Portugal, ou uma Espanha e meia, ou duas Venezuelas),
os 30 anos do Nobel, os 60 do primeiro conto. Ele já não se importa com isso.
No domingo, por exemplo, na mansidão do casarão amplo e branco do bairro de Pedregal de San Angel, na Cidade do México, um endereço emblemático - calle Fuego, quase esquina com a calle Água - almoçavam, com ele e Mercedes, Carmen e Álvaro Mutis, seu amigo mais fraterno, uma amizade que perdura há mais de seis décadas. Longe dos ruídos do mundo, longe dos vendavais da vida, era só mais um almoço de domingo, o último antes que ele cumprisse o que cumpriu na terça-feira, 6 de março de 2012: 85 anos de uma vida vivida a cada instante.
Já lá se vai um bom tempo que ele vive
assim, quieto no seu canto, recebendo pouquíssima gente, navegando nas águas
mansas de uma memória sem fundo nem fim. Na última vez que estivemos juntos,
faz uns seis meses, lá pelas tantas ele me disse: "Eu já não cuido de
nada, não me interesso por nada, não me inquieto por nada, não me preocupo por
nada". E, depois de um silêncio fugaz, fulminou: "Isso é o que me
preocupa". E riu seu riso de caribenho, prenhe de um humor único. O mesmo
riso de sempre, que distribui luz, mas não apaga um lampejo de terna melancolia
que não sai de seus olhos.
Em 2004 publicou "Memória de
Minhas Putas Tristes". E silenciou. Cinco anos depois, num almoço tardio
de um sábado de sol, ele me disse: "Não tenho mais ideias, por isso deixei
de escrever". Lembrei a ele que muitos anos antes, em agosto ou setembro
de 1981, quando estava por sair a "Crônica de uma Morte Anunciada", e
exatamente ali no gramado do casarão da calle Fuego e ao lado do limoeiro
carregado, eu tinha ouvido a mesma coisa. E que depois vieram livros
invulneráveis, a começar por "O Amor nos Tempos do Cólera". Ele
sorriu e não disse nada.
Várias passagens de seus livros
parecem fervores de uma imaginação febril. Parecem. Na verdade, são reflexos
sutis da memória coletiva.
Naquele 2004, uma semana depois do
lançamento de "Memórias de Minhas Putas Tristes", ele entrou, pela
primeira vez em seis anos, na casa que tem em Cartagena das Índias, no litoral
do Caribe colombiano, fincada nas margens da muralha que delimita a cidade velha
e vizinha ao antigo convento de Santa Clara.
Varou em claro a primeira noite
esperando, depois de seis anos, a hora de contemplar uma visão única,
perseguida sempre: o prolongado e exato momento em que amanhece sobre
Cartagena. Em que amanhece sobre sua memória, sobre sua vida. Faz cinco anos
que ele não volta a Cartagena, mas Cartagena continua nele.
Os amigos se impressionam, até hoje,
com a permanência da costa caribenha da Colômbia não apenas em sua obra, mas
principalmente na sua alma. Recordo, nitidamente, a impressão que me causou, no
inverno de 1980, que foi pesado no México, o ambiente cálido de seu estúdio de
trabalho, nos fundos do casarão da calle Fuego. Havia um aparelho que
controlava a temperatura, marcada rigorosamente em 25 graus - que é a que ele
recordava como sendo a de Cartagena. Nem um grau a mais no inverno nem um a
menos no verão. Não importava a temperatura lá de fora: dentro do estúdio, que
eu chamava e chamo de templo, ele estava sempre na Cartagena da sua memória. A
mesma cidade onde ele esperou um incerto amanhecer no fim de outubro de 2004.
É nesse mundo, onde ele está ancorado,
um mundo envolto nas neblinas da memória, e onde tudo pode acontecer de novo,
que ele amanheceu na terça-feira, o primeiro dia de seus 85 anos de vida.
Antes, muito antes, o primeiro de seus
muitos dias foi um domingo. Ao amanhecer de 6 de março de 1927, em Aracataca,
um povoado perdido nos confins do Caribe colombiano, despencou um aguaceiro
impiedoso. Debaixo da tormenta, às 8h30 em ponto, ele viu a luz pela primeira
vez. Foi chamado de Gabriel José de la Conciliación García Márquez, primeiro
filho de Luisa Santiaga e Gabriel Elígio. Nasceu na casa de seu avô materno, o
coronel Nicolás Márquez Mejía - que, aliás, naquele exato momento estava na
igreja acompanhando a missa das 8.
Aracataca era um casario, uma
cidadezinha de nada, plantada em meio a extensos bananais. Seus dias eram de um
calor sem fim, sufocados por nuvens de poeira.
Em muito do que escreveu ele recorda
aquele sol da infância - um sol tão inclemente em sua claridade que os
girassóis não sabiam para onde girar. E não havia chuva: quando despejavam do
céu, as águas vinham na forma de tormentas assustadoras, furiosos aguaceiros
extraviados de tempestades tropicais.
O escritor reiterou sempre qual foi o
pilar básico de sua escrita: a vida cotidiana, a real realidade de quem habita
e sobrevive neste continente
Nessa paisagem transbordante de cores
e calores Gabriel García Márquez passou seus primeiros oito anos - tempo
suficiente para amealhar uma memória desmesurada e perene e também para descobrir
o mundo e suas coisas a partir do casarão do coronel, onde vivia cercado por
mulheres, pelas histórias de fantasmas contadas por sua avó e pelas lembranças
de guerra de seu avô.
Dessa infância, desse pequeno universo
íntimo, surgiu não apenas sua escrita, mas sua maneira de compreender a vida,
de ver e abraçar a realidade transbordante que é a América Latina. Foi dos
primeiros a entender que nessas nossas comarcas a realidade é muito mais
delirante que a mais delirante das imaginações.
Em tudo o que escreve ele soube,
melhor que ninguém, traduzir essa marca tão forte e profunda. Disse e redisse
infinitas vezes que não há uma só linha de toda a sua escrita que não tenha
como ponto de partida a realidade.
Várias passagens de seus livros
parecem fervores de uma imaginação febril. Parecem. Na verdade, são reflexos
sutis e poéticos da memória coletiva, do imaginário das nossas gentes. Ou seja:
uma outra forma de relatar a realidade. De explicar o inexplicável. De nos
aproximar a outro mundo possível, diferente daquele ao qual parecemos
condenados.
Essa forma, tão insólita aos olhos de
quem necessita ansiosamente de uma explicação para tudo o que fuja aos
parâmetros do acomodamento, desnorteou os explicadores do óbvio. E desnorteou
tanto que eles acabaram zanzando perdidos por labirintos obscuros, à procura de
uma luz esclarecedora.
Essa luz finalmente surgiu na forma de
um rótulo - o "realismo mágico". Dura labuta a dos explicadores. Em
plenos anos 70, tiveram de regressar a 1925, quando um crítico de artes visuais
utilizou pela primeira vez a expressão "realismo mágico" para se
referir ao trabalho de um grupo de pintores pós-expressionistas alemães. Pois
foi daí, das necessidades explicadoras de um crítico de artes plásticas, que
surgiu o rótulo que décadas depois emigrou para a literatura hispano-americana.
Tropeçando aqui e ali com outras
denominações, todas destinadas a buscar uma explicação para aquele jorro
incessante de poesia e realidade que teve muitas vertentes, mas cujo eixo mais
visível - não o único, por certo, mas o mais visível - está justamente num
livro chamado "Cem Anos de Solidão", os explicadores parecem ter se
esquecido do principal: a força da observação, a força da desaforada poesia e
da obstinada persistência que impregna a vida da gente dessas comarcas perdidas
chamadas América Latina. Uma realidade que está aí, que não muda: somos a
América Latina, essa é a porção que nos coube na partilha do mundo, somos
amálgama de mil raízes enredadas que se alimentam umas às outras.
García Márquez não foi nem é o único a
se empapar dessa certeza. Mas soube traduzir essa pena e essa maravilha como
ninguém. É verdade que a partir dele e dos explicadores do óbvio acabou
predominando, para a literatura contemporânea da América Latina, o rótulo de
"realismo mágico", como se a realidade vivida por nossa gente não
fosse, em si, absolutamente mágica nestas terras que nos tocaram na grande
repartição do mundo.
García Márquez, porém, reiterou sempre
qual foi o pilar básico de sua escrita: a vida cotidiana, a real realidade de
quem habita e sobrevive neste continente atormentado de esperanças. Escreveu
exatamente como as histórias que ouvia da avó materna. Sua obra tem muito mais
de realismo do que se poderia imaginar e, por isso mesmo, parece tão mágica.
Da mesma forma que a América Latina
está presente em tudo o que García Márquez escreve, como matéria-prima e
cenário intangível e permanente, também a ideia de romper fronteiras entre o
que se supõe real e o que se supõe imaginação surge a cada passo, como para recordar
que somos capazes, a partir justamente da nossa imaginação coletiva, de avançar
contra essa realidade - e transformá-la. Uma espécie de reflexo, carregado de
contundente lirismo, daquilo que disseram outros latino-americanos de olhar
afiado: em nossos países, nada do que acontece é resultado de um destino
malvado, e sim de um sistema injusto, que impede que sejamos o que poderíamos -
e deveríamos - ser.
Em um de seus contos - "Os
Funerais da Mamãe Grande" -, a certa altura um personagem diz que está na
hora de começar a contar a história, "antes que cheguem os
historiadores". Ou seja: a hora de antecipar a voz da memória popular,
coletiva, à voz que acaba por prevalecer, a da história oficial.
Pois essa voz coletiva, essa memória
profunda e multitudinária, foi o que García Márquez buscou - e encontrou.
Pela vida afora, viveu e vive apegado
a alguns de seus temas recorrentes. Persistiu em se agarrar na certeza mais
absoluta de que a raça humana é capaz de sobreviver às piores catástrofes,
inclusive as que ela mesma gera em seus afãs demenciais de ganância. Continuou
obcecado pela fé na possibilidade de existirem outras formas de se viver - mais
justas, menos absurdas, mais dignas. Continuou reivindicando, para todos
aqueles que parecem condenados a cem anos de solidão, uma segunda oportunidade
sobre a Terra.
Todos os seus livros são livros da
solidão e da nostalgia, e também da busca desesperada dessa segunda
oportunidade. São livros reveladores da infinita capacidade de poesia contida
na vida humana. O eixo, porém, é o mesmo, ao redor do qual giramos todos: a
solidão, a solidão e a esperança perene de encontrar antídotos contra essa
condenação.
Certa vez, numa entrevista, García
Márquez disse que escrevia para que seus amigos de sempre gostassem dele ainda
mais. Conseguiu isso e conseguiu muito mais. Queria conquistar mais afeto dos
amigos e acabou escrevendo uma obra descomunal - a história de todos nós, da
nossa infinita solidão carregada de esperanças.
Muitos anos atrás, num fim de tarde em
Zurique, no meio da calmaria suíça Gabriel García Márquez foi apanhado por uma
tormenta de neve. Para fugir dela, entrou num bar. Tempos depois, contou para
um de seus irmãos que dentro daquele bar ele descobriu o que gostaria de ter
sido de verdade nesta vida: "Tudo estava em penumbras, e um homem tocava
piano nas sombras, e os poucos clientes que estavam lá eram casais de
namorados. E naquele momento entendi que eu queria ter sido aquele homem que
tocava piano sem que ninguém visse o seu rosto, tocava só para que os namorados
se amassem mais".
Assim levou a vida: querendo viver na
penumbra, com sua timidez olímpica. A fama estrondosa que desabou em cima dele
depois de "Cem Anos de Solidão" só fez reforçar essa timidez, essa
inútil vontade de viver na penumbra, cercado de amigos e de afetos. Continua
aferrado ao seu sentido particular da amizade: "É um pouco essa coisa de
máfia: do lado de cá, estão os meus amigos; do lado de lá, o resto do mundo,
com o qual tenho um contato muito escasso".
E diz também que é um ser muito
solitário e triste. Uma característica, diz ele, que contraria todas as
aparências, mas é profundamente caribenha. Diz que a fama é capaz de fabricar a
maior e mais pavorosa das solidões. Que a solidão da fama só é comparável à
solidão do poder. E diz que tem uma curiosidade e uma atração sem limites pelo
poder, justamente por isso: "O poder absoluto é a realização mais alta e
mais completa do ser humano, e por isso resume, ao mesmo tempo, toda a sua
grandeza e toda a sua miséria".
Vive cercado de fama, viveu vizinho ao
poder, e ele mesmo foi imensamente poderoso, tanto que preferiu se isolar.
Sim, sim: nestes últimos anos, Gabriel
García Márquez anda quieto no seu canto, o casarão branco e amplo de uma
esquina impossível, a da água com o fogo. Ancorado numa memória luminosa,
navega águas serenas.
Lembro de quando ele se trancava em
seu estúdio, vestido com um macacão de mecânico - mas, isso sim: feito do jeans
que ele havia comprado no Vietnã -, e escrevia das sete da manhã às duas da
tarde. Usava uma Smith Corona elétrica. Às 10 h em ponto, fazia uma pausa e se
dava ao luxo de comer canapés elegantes e tomar refresco de tamarindo. Depois,
voltava para a caça da palavra exata. Sempre mergulhado na temperatura do seu
Caribe da memória, o mesmo Caribe e a mesma memória onde continua navegando
cada minuto de cada hora de cada um de seus dias.
Lembro de seu caminhar de bailarino
caribenho, de seu sorriso de fulgores, de sua entrega monástica à escrita.
Diz que não escreve mais. Que já não
tem ideias. Será?
Continua caminhando feito bailarino
pela vida. Continua esbanjando luz quando sorri. Continua em sua infinita
solidão, rompida apenas pelo afeto dos amigos mais amigos.
Continua o mesmo de sempre. Querendo,
talvez, ser aquele pianista do fundo de um bar na penumbra de uma tarde perdida
em Zurique, aquele que tocava para que os namorados se amassem mais.
*Eric Nepomuceno é escritor, autor de
"Coisas do Mundo" (Companhia das Letras), "O Massacre"
(Planeta) e "Antologia Pessoal" (Record). Traduziu oito livros de
Gabriel García Márquez, de quem é amigo desde 1978.
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