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6 de junho de 2012

Os rastros de maio de 2006


Wanderci Bueno



Publicamos abaixo a entrevista feita por Gisele Brito, na Revista Forum, com a senhora Débora que teve seu filho assassinado em maio de 2006 durante os enfrentamentos armados supostamente ocorridos entre o crime organizado e as forças militares. Débora, na luta pela punição dos assassinos de seu filho e de mais 492 outras assassinadas entre o dia 12 e 20 daquele ano disse à Revista Forum: “Eu queria mostrar que a ditadura não acabou. Ela continua até hoje. Mais dura, mais violenta. Em uma semana se matou mais de 400 pessoas, fora as outras que a gente não sabe. A ditadura durou 21 anos e matou menos gente. Nos crimes de maio, eles mataram trabalhadores empobrecidos, estudantes. A periferia está agonizando. O pobre está sendo exterminado no Brasil. A população está sendo exterminada.” 

A matéria original pode ser lida também em


Por Gisele Brito

Ainda impunes, os 493 assassinatos ocorridos naquele período mostram que métodos utilizados na época da ditadura militar continuam atuais. E o poder público se omite diante da injustiça.


“Quando li aquilo, eu comecei a entender o arquivamento dos casos, do caso do meu filho. Foi muito duro. Uma carta dos promotores do Fórum da capital, cheia de carimbos, com 58 assinaturas, dizendo que sentiam muito pelos agentes perdidos e parabenizando o comando por ter restabelecido a ordem.” A carta, citada de cor por Débora Maria da Silva, dizia que os promotores paulistas “reconheciam a eficiência” da polícia e a preocupação da corporação em “restabelecer a ordem pública violada, defendendo intransigentemente a população do nosso estado”. Débora, de 52 anos, é mãe de uma das 493 pessoas mortas entre 12 e 20 de maio de 2006, a maioria durante o período classificado na carta como um retorno da ordem. Mas, para Débora e outras mães que estão no grupo que ela coordena, e para diversas entidades de defesa dos direitos humanos, a suposta defesa “intransigente” da população, na verdade, foi o maior extermínio ocorrido no Brasil no século XXI. Um revide bárbaro executado por agentes de segurança do estado de São Paulo, que permanece impune seis anos depois.

Aquele maio a que Débora se refere entrou para a história de São Paulo. O noticiário foi tomado de imagens de rebeliões simultâneas em presídios, ônibus queimados, batalhões de polícia metralhados e informações sobre a morte de agentes de segurança, entre eles agentes penitenciários, bombeiros, guardas, policiais militares e civis. O caos se espalhou pela capital paulista. Supostos toques de recolher fizeram com que lojas e empresas fechassem mais cedo. No dia 15, segunda-feira após aquele fim de semana do Dia das Mães, 5 mil dos 15 mil ônibus da frota paulistana deixaram de circular, segundo o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – São Paulo (Condepe). Às 18 horas, as ruas da maior cidade do país já estavam praticamente vazias em razão do medo que tomou conta da população. Nas primeiras 48 horas da onda de violência, 40 agentes públicos foram assassinados, segundo relatório da Justiça Global e da Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard. Até 20 de maio, seriam 43.

Na época, a versão oficial divulgada para explicar os acontecimentos informava que membros do PCC, o Primeiro Comando da Capital, estavam promovendo os ataques em reação à transferência de presídio de alguns de seus principais líderes, entre eles Marcos Willians Herbas Camacho, conhecido como Marcola. Cinco anos depois, o estudo da Justiça Global e da Faculdade de Harvard apontou que, na verdade, as razões para os ataques foram a revolta contra esquemas de corrupção de policiais que extorquiam famílias de membros do PCC e o sequestro do enteado de Marcola, realizado por policiais. Justamente por isso, o título do relatório é “São Paulo sob Achaque”, denunciando um esquema de corrupção e extorsão praticadas por agentes públicos, que deveriam cumprir a função de defender o Estado de Direito.

Os atentados contra agentes de segurança promovidos pelo PCC só teriam cessado depois de um encontro, na tarde do dia 15, entre Marcola e uma advogada e ex-delegada da Polícia Civil, que dizia ter influência sobre a facção. A reunião foi articulada pelo governo do estado, que inclusive providenciou um jato da Polícia Militar para transportar a advogada, como indica o relatório da Justiça Global. No entanto, um acordo entre o governo e a facção criminosa foi veementemente negado pelas autoridades. 

Mas assim como a maioria dos civis mortos entre 12 e 20 de maio de 2006, o filho de Débora não morreu no período em que predominaram as ações atribuídas ao PCC. Os relatórios mostram que a morte de civis se intensificou a partir do dia 15, quando as ações da facção já arrefeciam, chegando à chocante marca de 493 pessoas. Parte delas ocorreu em supostos confrontos com a polícia, em muitos casos com indícios de adulteração e forja de provas. Houve também casos de pessoas vítimas de grupos de extermínio, perpetrados por homens encapuzados em carros escuros, em que também havia sinais da participação de policiais. “Foi como se uma nuvem assassina tivesse passado pelo estado”, relembra o médico Henrique Carlos Gonçalves, membro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp). 

O Cremesp teve um papel fundamental para a compreensão dos fatos ocorridos naquele período. Ao tomar conhecimento da violência que se propagava, o conselho se uniu à comissão independente montada pelo Condepe, composta por diversos órgãos de defesa dos direitos humanos, e acompanhou as necrópsias nos Institutos Médicos Legais (IML). “Havia uma grande preocupação em relação às necrópsias que davam entrada. Até por antecedentes históricos – a ditadura, mortes no Carandiru –, a perícia médica legal foi considerada suspeita de falta de imparcialidade. Isso nos chamou a atenção porque a perícia é um ato médico”, explica Gonçalves.

Os laudos eram checados em tempo real. “Recebíamos um rascunho da necrópsia para garantir que não houvesse supressão ou colocação. Só o que o perito viu ali”, relata. “Aquela imensidão de cadáveres, parecia uma guerra. Foi muito marcante para mim. Era trágico, brutal com a vida humana, um enorme desrespeito às leis e cidadania. Para mim, aquela visão só se compara com o acidente da TAM [de 2007], mas com uma característica mais degradante em função de todo o processo de violência”, lembra o médico.

A imagem que marcou o médico para sempre é chocante, mas sua atuação valeu a pena. Graças ao trabalho feito pelo órgão nos IMLs, foi possível constatar que 60% dos 493 corpos registrados no período receberam pelo menos um tiro na cabeça.  Quase 13% dos tiros encontrados em todos os baleados foram dados à curta distância ou à queima-roupa. Em 14,4% dos casos, os tiros atingiram o abdômen; em 30,5%, o tórax e em 27,5%, a cabeça ou pescoço, regiões consideradas de alta letalidade.

Um relatório feito em 2008 pelo Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro chamou atenção, ainda, para o fato de que 27% das vítimas apresentavam pelo menos um disparo na região posterior da cabeça, “região de altíssima letalidade e muito difícil de ser atingida em um confronto genuíno”. E 57% dos cadáveres teriam recebido pelo menos um disparo pelas costas.  Diante dessas evidências, Gonçalves não tem dúvidas: “Dá pra dizer que foram execuções. Tiros de cima para baixo, nas costas, em gente ajoelhada. Foi uma guerra não divulgada, porque na guerra você não fere, não prende porque vai te dar trabalho. Na guerra a intenção é matar, eliminar. E foi isso que ficou caracterizado”, afirma.

Impunidade

Edivaldo Soares de Andrade, filho de Helenita, foi morto na frente do portão de sua casa enquanto conversava com vizinhos, no Parque Bristol, zona sul de São Paulo. Na época, Dona Helenita contou à Fórum que assistia à TV e tinha acabado de se emocionar com a notícia das mortes de policiais, quando ouviu tiros na rua. Seus dois filhos foram baleados com outras duas pessoas. Apenas um deles sobreviveu. Os atiradores estavam encapuzados, mas há indícios de que eram policiais. “Que proteção a gente tem? Só de Deus”, declarou à Fórum em 2006. Hoje, com o inquérito arquivado, ela diz não ter esperança de ver o caso solucionado. “Eu não acredito, não. Quem viu tem medo de falar”, desabafa.

Segundo o defensor público Antônio José Maffezzoli Leite, o caso de Helenita e das outras mães ouvidas pela reportagem não são exceção. Todos foram arquivados. O inquérito do homicídio de Edson Rogério Silva dos Santos, filho de Débora, mencionada no começo da matéria, também foi. O rapaz, de 29 anos, trabalhava como gari na Baixada Santista, e tinha ido com um amigo a um posto de gasolina abastecer uma moto quando um grupo de policiais os abordou, questionando se eles estavam armados. Conforme relatos contados a Débora, Edson respondeu que era trabalhador, e um dos oficiais teria dito: “Morreu, você é ladrão.” Os policiais o agrediram, mas foram embora. Edson foi para outro posto buscar gasolina, quando então foi assassinado com um tiro no coração e um em cada pulmão. Minutos depois, uma viatura chegou ao local do crime, mas Edson não resistiu e morreu.

Débora diz ter implorado aos delegados que cuidaram do inquérito para que as imagens das câmeras de vigilância do posto fossem apreendidas, o que levou meses para ser feito – e só aconteceu quando as filmagens do dia já haviam sido apagadas. Por seu próprio esforço, ela conseguiu demonstrar falhas nas investigações oficiais e provar que os policiais que chegaram à cena do crime logo em seguida tinham apresentado versões contraditórias sobre o que os motivou a ir até lá. Ela desconfia que os homens que discutiram com seu filho, os que o mataram e os que supostamente o socorreram são as mesmas pessoas. A participação de policiais e de grupos parapoliciais foi reconhecida pelo promotor que cuidou do inquérito de Edson, e ela conseguiu uma indenização do Estado, que reconheceu as falhas na investigação, mas a autoria do crime é até hoje desconhecida, e o caso permanece arquivado.

Débora é coordenadora das Mães de Maio, grupo que reúne mães de vítimas dos crimes de maio e luta para que a justiça seja feita. “Eu sou uma mulher amputada. Sou um lixo humano. Tiraram meu filho de mim. A única coisa que me sustenta é a luta”, conta. Antes da morte de Edson, Débora não era engajada em nenhuma causa, mas a perda do filho mudou sua vida. “Eu queria mostrar que a ditadura não acabou. Ela continua até hoje. Mais dura, mais violenta. Em uma semana se matou mais de 400 pessoas, fora as outras que a gente não sabe. A ditadura durou 21 anos e matou menos gente. Nos crimes de maio, eles mataram trabalhadores empobrecidos, estudantes. A periferia está agonizando. O pobre está sendo exterminado no Brasil. A população está sendo exterminada.” 

Depois do episódio, Débora ficou doente, deprimida e se afastou do resto da família, mas abriu seus horizontes para a necessidade de lutar. “Esse negócio de paz... Não existe paz se não houver justiça. Eu digo que quem vai para a cadeia é o crime desorganizado, porque o crime organizado está blindado, protegido pelas instituições. Debaixo do capuz que mata está o Estado.”

A história se repete

Quatro anos depois dos crimes de maio, outros eventos com as mesmas características acometeram a Baixada Santista. Pelo menos 26 jovens foram mortos. Entre eles estava Marcos Paulo Soares Canuto, filho de Flávia Gonzaga. O garoto de 18 anos foi a uma festa de aniversário na periferia de São Vicente e, ao voltar para casa, foi abordado por homens encapuzados. Segundo testemunhas, que não quiseram prestar depoimento à polícia por medo de represálias, um dos homens chegou a dizer que haviam pegado a pessoa errada, ao que o outro respondeu: “Está na chuva é para morrer”. Marcos Paulo foi alvejado por dez tiros. O amigo que o acompanhava, por sete. 

“O meu filho não era bandido – e mesmo que fosse. Não existe pena de morte no Brasil. Mas as pessoas ficam sempre perguntando o que ele estava fazendo naquele bairro àquela hora, porque nós não moramos na periferia. Quer dizer, você não pode ter um amigo em outro bairro? Só porque ele está em um bairro afastado, pobre, ele é bandido?”, questiona. “Ou seja, quem mora lá é marginalizado. A gente vê que a maioria dos mortos é preto, pobre. Os ataques de abril [de 2010] só cessaram quando o Consulado Americano pediu para que os turistas não viessem para Santos porque estava perigoso. Daí, os prefeitos e o próprio governador disseram que a situação estava sob controle e que os problemas só estavam acontecendo na periferia. Ou seja, se você não mora na orla, você não vale nada”, desabafa. Assim como os demais, o processo da morte de Marcos também está arquivado. “Se eu não correr atrás para provar que ele foi morto pela polícia, ele vira estatística, vai ser criminalizado. E ele não é estatística. Ele é meu filho. Metade do sangue que derramou ali era meu.”

Débora acredita que os crimes de abril de 2010 não teriam acontecido se os de maio de 2006 tivessem sido solucionados. Rose Nogueira, que era presidente do Condepe naquele mês de maio, também avalia que a impunidade em outros processos de crime e tortura no Brasil está na origem das duas séries de crimes. “Há mais de uma centena de casos que foram registrados como resistência seguida de morte. Como uma pessoa pode estar resistindo com tiros na cabeça, na nuca, nas costas? Esses crimes aconteceram porque os crimes da ditadura e os que aconteceram depois da ditadura não foram punidos. Na ditadura, nós tivemos o esquadrão da morte, que trabalhava para a repressão, e os agentes depois foram condecorados. Os métodos que eles usam hoje são os mesmos da ditadura”, aponta.

Federalização

Débora explica que o movimento busca, desde 2010, a federalização dos crimes arquivados. Esse, de acordo com Maffezzoli, é um mecanismo recente da legislação brasileira, que permite o deslocamento de competência para julgar crimes contra os direitos humanos. Isso pode acontecer quando a Justiça local não tem condições para investigar o caso. Pelas circunstâncias dos eventos de maio e de abril, os movimentos acreditam que a Justiça paulista está dando demonstrações de que não tem interesse em investigar a fundo aquelas mortes.

“O ouvidor federal falou para nós que o procurador não ia pedir a federalização porque o estado de São Paulo tinha tecnologia de primeiro mundo para tocar a investigação. Agora, vamos pedir por escrito e denunciar para a OEA [Organização dos Estados Americanos]”, explica Débora. “Eu temo pela minha vida, mas não tenho medo, porque não tenho mais o que perder, o bem maior era meu filho.” 

“Estou esperando ela chegar até hoje”

Depoimento de Márcia Aparecida de Almeida Silva Ferreira, mãe de Talita Cristine de Almeida Silva, morta aos 20 anos no Guarujá, em 14 de maio.

“Era dia das mães. Estava todo mundo bebendo, farreando na casa do meu sogro. Minha filha estava na casa da avó. Aí eu disse que estava mal, angustiada, e meu marido e eu voltamos para casa. Quando chegamos, tinham tocado fogo em um ônibus aqui perto. E depois tentaram invadir a casa de um policial que morava na vizinhança. Liguei para a minha mãe para ela impedir que a Talita voltasse para casa. Depois de 15 minutos a menina chegou em casa, brava porque eu tinha assustado a avó.

Aí ficamos no portão conversando. Os olhos dela brilhavam, a pele estava limpinha. Estava toda brilhosa. Eu comentei que ela estava linda. Ela se levantou, me deu um beijo e brincou. ‘Sou filha da Márcia, sou gostosa’. Aí um rapaz da frente chamou ela. Ele queria um celular emprestado. Ela pediu para o irmão ir buscar. Nós entramos e ela ficou lá. De repente, eu escutei os cinco pipocos. Parecia que era dentro de casa. Na hora, eu botei a mão na cabeça e gritei: ‘Minha filha!’ Quando olhei, vi meu marido gritando com a mão na cabeça no meio da rua. Ele só disse que ela e o vizinho tinham tomado um tiro de raspão. Só depois minha filha mais velha disse que ela não ia voltar. Ela levou dois tiros na cabeça. Eu entrei em desespero. Quase enlouqueci.

Disseram na rua que um policial viu tudo e só deu um tiro para cima, aí eu reclamei com ele: ‘Só atirou para cima por quê? Era seu colega?’. Depois disso, ele foi embora do bairro. Os outros vizinhos que viram os homens também foram embora do bairro. Eles estavam de capuz, mas só cobriam os olhos e foram reconhecidos pelo rapaz que estava com a Talita. Ele chegou a gritar, antes de ser baleado: ‘Pai, é o fulano!’ Mas ninguém quer falar sobre isso, todos estão com medo. Todos os que viram foram embora do bairro. Ninguém fez nada. Arquivaram o caso. Meu marido foi tentar ver o inquérito e brigaram com ele: ‘O que você quer com isso depois de todo esse tempo?’

Eu quero que seja investigado. Minha filha não era vadia, não era suja. Mesmo que fosse, não merecia isso. Eu só quero justiça. Eu não sou mais a mesma mulher. Eu não tenho mais paz, não tenho mais sossego. O que eu sinto não desejo para mulher nenhuma.

A menina trabalhava. Cuidou de mim quando eu estava doente. Era amada por todos. Ela era muito amada. Isso destruiu minha família. Mas eu quero limpar o nome dela. A gente sabe que ela não devia nada para ninguém. Ela tinha trabalho. Tinha 20 anos, mas era uma criança. Eu estou esperando ela chegar até hoje para pôr ela na cama.”

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