Reproduzimos abaixo um lúcido artigo
de Luiz Felipe Martins Candido que trata da questão das enchentes, relacionando
suas origens com as políticas publicas que são implantadas para atender a
lógica do capital e da especulação.
É nossa opinião que, para que sejam
alteradas estas políticas, necessariamente devem ser alteradas as bases de todo
sistema capitalista, passando a propriedade das terras urbanas para o Estado e que este esteja sob controle direto da maioria da população. Ou seja: uma política urbana
que vá de encontro aos interesses da população pobre, deve emanar de todo o
povo e permanecer sob controle dele mesmo.
Sem socialismo não haverá políticas
públicas duradouras. O Planejamento Urbano deve ser parte integrante do
planejamento de toda a produção e isso só será possível com ruptura com a
propriedade privada dos grandes meios de produção, cuja inerente lógica é a
anarquia.
Boa leitura.
Nas novas enchentes, A mídia
identifica “culpados” de sempre: as chuvas ou os pobres. E esquece A segregação
urbana, o problema principal.
Luiz Felipe Martins
Candido ( http://www.outraspalavras.)
09-01-2012
“Equilibrado num
barranco incômodo, mal acabado e sujo,
porém, seu único lar, seu bem e seu refúgio.
Um cheiro horrível de esgoto no quintal,
por cima ou por baixo, se chover será fatal.
Um pedaço do inferno, aqui é onde eu estou.
Até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou.
Numerou os barracos, fez uma pá de perguntas.
Logo depois esqueceram, filhos da puta!”
Racionais Mcs, O homem na estrada
“Chuvas modernas,
sem trovoadas, sem igrejas em prece,
mas com as ruas igualmente transformadas em rios,
os barracos a escorregarem pelos morros;
barreiras, pedras, telheiros a soterrarem pobre gente!
Chuvas que interrompem estradas, estragam lavouras,
deixam na miséria aqueles que justamente desejariam
a boa rega do céu para a fecundidade de seus campos…”
Cecília
Meireles, Chuva com lembranças
Todo ano é assim, na virada do calendário, temporada de chuvas. Nos
últimos dias, as notícias sobre catástrofes relacionadas às chuvas têm ganhado
espaço nos meios de comunicação: jornais impressos, telejornais, redes sociais,
rádio, todos noticiam à exaustão os estragos causados.
Evidentemente, informar sobre os acontecimentos deveria ser o papel dos meios
de comunicação. Mas, o que vemos é, mais uma vez, a história contada pelas
metades. E, como se sabe, meia verdade, mentira inteira. Chamam a atenção as
manchetes: todas, invariável e reiteradamente, ressaltam os resultados das
chuvas, lamentam as perdas materiais e humanas, louvam a comovente fé e
persistência desse tal povo brasileiro, que toma apanha, sofre, perde tudo e
não desanima. Povo especialista em levantar, sacudir a poeira e dar a volta por
cima. Enfrenta uma enchente aqui, um deslizamento ali: tudo superado, ano que
vem tem mais.
Há em toda parte um
esvaziamento do conteúdo político desses eventos e a consequente naturalização
dessas situações. Joga-se a responsabilidade para as chuvas, a fúria da natureza. Quase
sempre, a culpa recai sobre as próprias vítimas: afinal, “foi morar na beira do
barranco (ou na margem do ribeirão), queria o que?”, “a natureza, quando
agredida, dá o troco”. Etc., etc., etc. Ou seja, o que se vê é a contingência
do risco ser atribuída à “falta de educação” ou “falta de consciência
ambiental”, já que as situações de risco são vistas como consequência
inevitável da ocupação predatórias do espaço urbano pelos
pobres e da falta de iniciativas na preservação do ambiente.
O poder público, em geral nas figuras das Coordenadorias de Defesa Civil
ou Corpo de Bombeiros, assume uma visão técnica, lançando mão de determinados
indicadores (a composição físico-química dos solos, o grau de declividade dos
terrenos etc., enfim, o que possa ser mensurado pelo saber técnico) para
classificar uma situação como de risco e calcular as probabilidades de que
certos eventos indesejáveis ocorram: como deslizamentos, desmoronamentos,
inundações, surtos de doenças relacionadas à precariedade das condições de saneamento…
A partir desse diagnóstico técnico, os representantes do poder público
geralmente aconselham determinadas medidas de prevenção, reparação e mitigação,
que incluem, em quase todas as situações abandono temporário ou definitivo da
área.
Muitas vezes o saber
técnico, ao tomar uma perspectiva unívoca, oprime e se impõe sobre o saber
leigo através de um discurso científico e institucionalizado, relegando outras
falas à clandestinidade, conferindo-lhes status de
irracionalidade e ignorância. Além disso, o poder público leva a cabo algumas
ações de mitigação dos danos, nos momentos mais críticos. A implementação
dessas ações (necessárias, mas não apenas) e concepções exerce um poderoso
efeito de naturalização e normalização das situações de risco, ocultando os
mecanismos sócio-econômicos e políticos responsáveis pela construção social
dessas situações.
A questão é tratada
como um “problema ambiental”, noção vaga e inconsistente (embora essencial à
ideologia do desenvolvimento sustentável). Muitas vezes, a mesma situação que
se mostra problemática para determinados atores, apresenta-se como cômoda ou
funcional para outros. As diferentes visões e interesses que animam os
conflitos ambientais e as situações de risco não resultam
de processos aleatórios. Ligam-se a desigualdades sociais objetivas. Numa
sociedade capitalista, as formas de propriedade vigentes determinam a primazia
da apropriação das condições naturais como condição para a produção de
mercadorias com vistas à acumulação de capital. Ou seja, a “necessidade” da
acumulação faz com que a espacialização da economia capitalista[1] implique
necessariamente a captura das condições naturais como condições de produção de
mercadorias.
O espaço urbano não
está isento dessa apropriação. Em tempos em que a cidade é tratada ao mesmo
tempo como mercadoria e empresa, há uma crescente valorização do espaço na
“cidade legal”. O planejamento das cidades excludentes não contempla as classes
pobres. Essas, muitas vezes, habitam áreas carentes de infra-estrutura urbana,
incluindo terrenos geotecnicamente inseguros ou próximos a leitos de rios, por
exemplo: “[‘a cidade ilegal’] não cabe nas categorias do planejamento
moderno/funcionalista, pois mostra semelhança com as formas urbanas
pré-modernas”[2].
Portanto, o Plano Diretor está desvinculado da gestão urbana, não ultrapassa a
dimensão do “plano discurso”, pois não ultrapassa os limites entre teoria e
prática, permanecendo assim as áreas de periferia carentes dos equipamentos
urbanos de infra-estrutura. Isto, do ponto de vista da política clientelista
comumente observada nas cidades brasileiras é funcional, fomentando relações
políticas arcaicas, um mercado imobiliário restrito e especulativo e uma forma
de aplicação arbitrária da lei, de acordo com uma relação de favor. As obras de
infra-estrutura urbana propiciam e sustentam a especulação fundiária, ao invés
de promover a democratização do acesso a terra para a habitação. Proprietários
de terras e capitalistas das atividades de promoção imobiliária e construção
constituem grupos de poder determinantes das realizações orçamentárias das
cidades.
Há o contexto de
competição interlocal a nível global: as cidades competem entre si para
atraírem os olhares dos investidores. Essa nova maneira de conceber a cidade
como mercadoria a ser vendida, mas que deve ser gerida como uma empresa e que,
para isto, deve contar com uma forte propaganda de modo a suscitar no
“citadino” um forte sentimento patriótico[3],
baseia-se numa tentativa de se aplicar à realidade brasileira (mais comumente
nas grandes metrópoles) um modelo de planejamento importado, com todo um
histórico de ineficiência no provimento democrático dos recursos urbanos.
Segundo Otília
Arantes, esta idéia pode ser assim resumida: “(…) coalizões de elite centradas
na propriedade imobiliária e seus derivados, mais uma legião de profissionais
caudatários de um amplo arco de negócios decorrentes das possibilidades
econômicas dos lugares, conformam as políticas urbanas à medida que dão livre
curso ao seu propósito de expandir a economia local e aumentar a riqueza”[4]. É a
utilização capitalista do espaço urbano que atribui um valor à propriedade
privada da terra e é o fluxo do capital que dá à propriedade da terra urbana um
conteúdo econômico. Portanto, o capital promove a existência de duas ordens
urbanas: “A cidade formal, das elites e das camadas médias, cidade ‘urbanizada’
onde opera o setor imobiliário formal, ou as formas de produção capitalista da
moradia; e a cidade informal, ilegal, irregular, das camadas populares, a
cidade ‘desurbanizada’, onde operam os mecanismos informais de acesso à terra
[...] ou as formas não capitalistas de produção da moradia. A oposição entre
essas duas cidades (ou essa cidade partida) se acentua pela permanência de um
padrão de urbanização com baixos níveis de investimento público e com alto grau
de disputa entre os grupos sociais pelo acesso a esses recursos escassos, sejam
de ordem material, sejam de ordem simbólica, permitindo, além da diferenciação
das condições de vida, a reafirmação da ‘distinção social’ das elites”[5]. A
ausência de alternativas habitacionais, programas verdadeiros de habitação para
classes de baixa renda, é o fator que cria o “solo”, o substrato da dinâmica de
ocupações ilegais e, digamos, indignas de terras urbanas. Os reflexos de tudo
isso estão representados pelo restrito quadro de oportunidades de localização
para os mais pobres. Excluídos do acesso aos bens da urbanização e distribuídos
pelo espaço segundo uma lógica sistêmica de inclusão/exclusão no mercado de
terras urbanas, cada vez mais as pessoas se vêem na contingência de precisarem
habitar áreas de risco.
Há, nos últimos
tempos, um recorrente sentimento de “consciência de crise”. Nesse sentido, os
“problemas ambientais” são tratados como óbvios, já que são todos conhecidos
(do saber técnico, do poder público, entre outros, diga-se de passagem, nunca
da população ignorante).
Acontece que tal caráter de obviedade perde sentido diante das diferentes
percepções, pois o que se configura como um risco para uns, para outros, que
não o vivenciam, por exemplo, pode não o ser. Ou ainda, conforme aponta Ermínia
Maricato[6], a
desigualdade urbana frente a um forte mercado imobiliário e, com isso, a
existência em grande número de áreas ilegais de habitação, são vistas mesmo uma
solução, servindo para valorizar os imóveis inseridos no mercado legal e
cumprir um papel que deveria ser do poder público, suprindo alternativas
habitacionais para as populações mais pobres.
As pessoas não são iguais quanto ao seu acesso a “bens” ambientais, e
essa forma de desigualdade pode ser notada pela observação de fenômenos comuns
do meio urbano, como a localização de moradia em terrenos “geotecnicamente
inseguros”, tais como encostas. A desigualdade ambiental não existe sozinha. A
ela subjaz uma série de outras desigualdades tendo as populações economicamente
fragilizadas que arcar com os prejuízos do processo civilizatório moderno em
diferentes escalas, como a poluição industrial, ou mesmo a má alocação de suas
moradias por serem desprovidas de capacidade econômica de acesso aos terrenos
dotados de infra-estrutura básica e localizados em locais seguros.
Os riscos e, por
conseguinte, as tragédias, são construídos
socialmente, isto é, obedecem a regularidades que dizem respeito à
ordem social vigente. Ou seja, construção do risco é um processo social e
histórico. O desastre é a expressão mais de uma convivência vulnerável entre os
grupos sociais e seu meio. A vulnerabilidade é caracterizada como a
possibilidade de um grupo social antecipar, sobreviver, resistir e se recuperar do
impacto de uma ameaça. Consiste em uma combinação de fatores sócio-econômicos,
políticos, ambientais que determinam o grau a que um evento põe em risco a vida
das pessoas. O risco encontra-se localizado no domínio das desigualdades e
dinâmicas de vulnerabilização: pelas desigualdades ele é engendrado e ao mesmo
tempo as fomenta, formando um círculo vicioso. O que se quer ressaltar são as
dinâmicas de vulnerabilização geradas a partir do poder desigual, produzindo
uma mobilidade social que também compreende a questão ambiental/territorial, em
escala descendente.
As pessoas (e isso também inclui os pobres) produzem seus territórios no
dia-a-dia, mas não o fazem em condições de sua escolha, posto que há uma lógica
social econômica estrutural subjacente às suas escolhas. O movimento de
produção dos territórios urbanos de classes populares orienta-se pelo movimento
da acumulação de capital em nível estadual e, pela operação do mercado
imobiliário a nível municipal. Processo que é sempre repetido e até incentivado
pelas atuação seletiva do poder público na alocação de recursos. Contrariando
tais mecanismos, os habitantes dessas periferias da cidade têm que se utilizar
de práticas e ações comuns que marcam a longa e vagarosa trajetória de
construção das condições de urbanização dos territórios ao mesmo tempo em que
desfrutam os benefícios de laços de solidariedade e de uma territorialidade
peculiar, marcada pela representação do território como um lugar onde sua
identidade se expressa.
Ao contrário do que os meios de comunicação propagam de maneira cínica –
e o senso comum desinformado repercute –, as situações tidas como de risco e as
tragédias resultam da operação de mecanismos objetivos produtores de
desigualdades urbanas. As populações de baixa renda são compelidas, pelo
mercado imobiliário e pela especulação fundiária, a habitar os terrenos mais
baratos, precisamente os mais expostos aos riscos, às degradações ambientais e
à carência de infra-estrutura urbana. Além disso, por mediações complexas, a
operação de tais mecanismos e as ações e omissões do poder público se reforçam
mutuamente, num processo de circularidade funcional que aprisiona as populações
de baixa renda, que não dispõem de recursos para se mudarem para áreas
ambientalmente mais saudáveis e seguras.
Os moradores
atingidos, por sua vez, consideram o risco a partir de uma perspectiva
distinta, própria, condizente com seu lugar e sua condição. Eles avaliam e
manejam as situações de risco de acordo com um conhecimento prático, que se
constitui ao longo da convivência com a situação. Aquilo que Bourdieu chamou
de senso de realidade das
classes populares. Desenvolvem saberes, “teorias” e percepções a respeito dos
fenômenos que os atingem e sobre as probabilidades de que algo de trágico
aconteça efetivamente. Além disso, avaliam essas probabilidades e os possíveis
prejuízos em relação a um conjunto maior de outros “riscos” a que se vêem
sujeitados. Assim, por exemplo, a hipótese bastante incentivada pelos agentes
do poder público, de mudança para outro local mais seguro implica, na visão dos
moradores, riscos ainda maiores e de consequências mais dolorosas, tais como o
abandono de uma moradia que foi construída, ao longo de muitos anos, por meio
de enormes sacrifícios; a perda dos benefícios materiais e afetivos decorrentes
do fato de morar próximo a amigos de muitos anos e parentes; o aumento dos
gastos decorrentes de um provável aluguel (e o medo de não conseguir pagá-lo e
se ver na situação humilhante de ser posto na rua com a família); a diminuição
das chances de obtenção de trabalho remunerado etc..
Orientados por essas percepções, moradores atingidos desenvolvem
práticas de manejo da situação de risco, que vão desde ações de prevenção e
mitigação com recursos próprios (possivelmente incorporando visões naturalizadoras
e fatalistas) às reivindicações de ações do poder público e, em certos casos, à
resistência ao deslocamento compulsório.
Se quisermos uma compreensão efetiva dos problemas, objetiva (para além
do simples cálculo técnico das probabilidades envolvendo fenômenos naturais), a
fim de forjar soluções eficazes para essa mazela que assola as camadas pobres
da população, é necessário que se rompa com esse modelo atual de gestão do
espaço urbano. Há a necessidade de soluções técnicas para os problemas. Mas,
para além dessas, o problema é político. São as opções políticas dos envolvidos
e os posicionamentos tomados pelo estado na figura dos governantes que definem
os termos do problema: de sua existência e das soluções possíveis. Hoje, isso
diz respeito à atuação seletiva do poder público na alocação de recursos,
privilegiando áreas nobres da cidade e negligenciando aquelas áreas que são
economicamente “menos atraentes”. É preciso forjar políticas que dêem conta de
oferecer alternativas de moradia para as classes mais pobres. É preciso
compreender melhor o problema e os mecanismos sociais envolvidos na produção
dessas situações. Do contrário, a tragédia anunciada se repetirá
indefinidamente.
[1] HARVEY, David, A produção capitalista do espaço, São Paulo:
Annablume, 2005.
[2] MARICATO, Ermínia. As Idéias Fora do Lugar e o
Lugar Fora das Idéias: Planejamento Urbano no Brasil. In: ARANTES,
Otília B. Fiori; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A Cidade do Pensamento Único:
Desmanchando consensos. Petrópolis/RJ: Vozes, 2000. p. 121–187.
[3] VAINER, Carlos B. Pátria, Empresa e Mercadoria: Notas sobre a estratégia
discursiva do Planejamento Estratégico Urbano. In: ARANTES, Otília B. Fiori;
VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A Cidade do Pensamento Único:
Desmanchando consensos. Petrópolis/RJ: Vozes, 2000. p.75-103.
[4] ARANTES, Otília B. Fiori. Uma Estratégia Fatal:
A cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES, Otília B. Fiori; VAINER,
Carlos; MARICATO, Ermínia. A Cidade do Pensamento Único: Desmanchando consensos.
Petrópolis/RJ: Vozes, 2000. p. 11-71.
[5] CARDOSO, 2003 apud VARGAS, Maria Auxiliadora Ramos. Construção social da moradia de
risco: trajetórias de despossessão e resistência – A experiência de
Juiz de Fora/MG. Dissertação (mestrado em planejamento urbano e regional):
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
[6] MARICATO, Ermínia. As Idéias Fora do Lugar e o
Lugar Fora das Idéias: Planejamento Urbano no Brasil. In: ARANTES,
Otília B. Fiori; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A Cidade do Pensamento Único:
Desmanchando consensos. Petrópolis/RJ: Vozes, 2000. p. 121–187.
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