Aos que lutaram e lutam contra todas as formas de opressão, aos que tombaram nos calabouços e nas batalhas contra a ditadura militar, aos familiares dos desaparecidos, aos que não se curvam e seguem na luta pelo socialismo, reproduzimos este emocionante grito de uma jornalista, sensível, que como tantos outros sofreu com os crimes cometidos pela ditadura.
Ela estava lá, segundo ela por acaso, nos protestos contra os militares no Rio. Quem sou eu para desmenti-la.
A luta para que os torturadores e assassinos, os mandantes, sejam julgados é parte da luta pelo desmantelamento do aparato repressivo herdado da ditadura militar.
Só um poder que seja de fato da maioria é que poderá realizar o acerto de contas com os serviçais da burguesia e do imperialismo, inclusive com aqueles que bandearam de lado, e hoje estão em seus escritórios palacianos, em seus aviões e até mesmo em empresas de notórios personagens da ditadura.
Esse poder será o poder do socialismo!
Angel Hildegard
Do Blog de Hildegard Angel / R7
A
manifestação dos caras-pintadas diante do Clube Militar
Foi um acaso. Eu passava hoje pela Rio
Branco, prestes a pegar o Aterro, quando ouvi gritos e vi uma aglomeração do
lado esquerdo da avenida. Pedi ao motorista para diminuir a marcha e percebi
que eram os jovens estudantes caras-pintadas manifestando-se diante do Clube
Militar, onde acontecia a anunciada reunião dos militares de pijama celebrando
o "31 de Março" e contra a Comissão da Verdade.
Só vi jovens, meninos e meninas,
empunhando cartazes em preto e branco, alguns deles com fotos de meu irmão e de
minha cunhada. Pedi ao motorista para parar o carro e desci. Eu vinha de um
almoço no Clube de Engenharia. Para isso, fui pela manhã ao cabeleireiro,
arrumei-me, coloquei joias, um vestido
elegante, uma bolsa combinando com o rosa da estampa, sapatos prateados. Estava
o que se espera de uma colunista social.
A situação era tensa. As crianças,
emboladas, berrando palavras de ordem e bordões contra a ditadura e a favor da
Comissão da Verdade. Frases como "Cadeia Já, Cadeia Já, a quem torturou na
ditadura militar". Faces jovens, muito jovens, imberbes até. Nomes de
desaparecidos pintados em alguns rostos e até nas roupas. E eles num entusiasmo,
num ímpeto, num sentimento. Como aquilo me tocou! Manifestantes mais velhos com
eles, eram poucos. Umas senhoras de bermudas, corajosas militantes. Alguns
senhores de manga de camisa. Mas a grande maioria, a entusiasmada maioria, a
massa humana, era a garotada. Que belo!
Eram nossos jovens patriotas clamando
pela abertura dos arquivos militares, exigindo com seu jeito sem modos, sem
luvas de pelica nem punhos de renda e sem vosmecê, que o Brasil tenha a
dignidade de dar às famílias dos torturados e mortos ao menos a satisfação de
saberem como, de que forma, onde e por quem foram trucidados, torturados e
mortos seus entes amados. Pelo menos isso. Não é pedir muito, será que é?
Quando vemos, hoje, crianças
brasileiras que somem, se evaporam e jamais são recuperadas, crianças que
inspiram folhetins e novelas, como a que esta semana entrou no ar, vendidas num
lixão e escravizadas, nós sabemos que elas jamais serão encontradas, pois nunca
serão procuradas. Pois o jogo é esse. É esta a nossa tradição. Semente plantada
lá atrás, desde 1964 - e ainda há quem queira comemorar a data! A semente da
impunidade, do esquecimento, do pouco caso com a vida humana neste país.
E nossos quixotinhos destemidos e
desaforados ali diante do prédio do Clube Militar. "Assassino!",
"assassino!", "torturador!", gritava o garotinho louro de
cabelos longos anelados e óculos de aro redondo, a quem eu dava uns 16 anos,
seguido pela menina de cabelos castanhos e diadema, e mais outra e mais outro,
num coro que logo virava um estrondo de vozes, um trovão. Era mais um militar
de cabeça branca e terno ajustado na silhueta, magra sempre, que tentava abrir
passagem naquele corredor humano enfurecido e era recebido com gritos e
desacatos. Uma recepção com raiva, rancor, fúria, ressentimento. Até cuspe eu
vi, no ombro de um terno príncipe de Gales.
Magros, ainda bem, esses velhos
militares, pois cabiam todos no abraço daqueles PMs reforçados e vestidos com
colete à prova de balas, que lhes cingiam as pernas com os braços, forçando a
passagem. E assim eles conseguiram entrar, hoje, um por um, para a reunião em
seu Clube Militar: carregados no colo dos PMs.
Os cartazes com os rostos eram
sacudidos. À menção de cada nome de desaparecido ao alto-falante, a multidão
berrava: "Presente!". Havia tinta vermelha cobrindo todo o piso de
pedras portuguesas diante da portaria do edifício. O sangue dos mortos ali
lembrados. Tremulavam bandeiras de partidos políticos e de não sei o quê mais,
porém isso não me importava. Eu estava muito emocionada. Fiquei à parte da
multidão. Recuada, num degrau de uma loja de câmbio ao lado da portaria do
prédio. A polícia e os seguranças do Clube evacuaram o local, retiraram todo
mundo. Fotógrafos e cinegrafistas foram mandados para a entrada do
"corredor", manifestantes para
o lado de lá do cordão de isolamento. E ninguém me via. Parecia que eu era
invisível. Fiquei ali, absolutamente sozinha,
testemunhando tudo aquilo, bem uns 20 minutos, com eles passando
pra lá e pra cá, carregando os generais, empurrando a aglomeração, sem
perceberem a minha presença. Mistério.
Até que fui denunciada pelas lágrimas.
Uma senhora me reconheceu, jogou um beijo. E mais outra. Pessoas sorriram para
mim com simpatia. Percebi que eu representava ali as famílias daqueles mortos e
estava sendo reverenciada por causa deles. Emocionei-me ainda mais. Então e
enfim os PMs me viram. Eu, que estava todo o tempo praticamente colada neles!
Um me perguntou se não era melhor eu sair dali, pois era perigoso. Insisti em
ficar, mesmo com perigo e tudo. E ele, gentil, quando viu que não conseguiria
me demover: "A senhora quer um copo d'água?". Na mesma hora o copo
d'água veio. O segurança do Clube ofereceu: "A senhora não prefere ficar
na portaria, lá dentro?" "Ah, não, meu senhor. Lá dentro não. Prefiro
a calçada". E nela fiquei, sobre o degrau recuado, ora assistente, ora
manifestante fazendo coro, cumprindo meu papel de testemunha, de participante e
de Angel. Vendo nossos quixotinhos empunharem, como lanças, apenas a sua voz,
contra as pás lancinantes dos moinhos do passado, que cortaram as carnes de uma
geração de idealistas.
A manifestação havia sido anunciada.
Porém, eu estava nela por acaso. Um feliz e divino acaso. E onde estavam
naquela hora os remanescentes daquela luta de antigamente? Aqueles que
sobreviveram àquelas fotos ampliadas em PB? Em seus gabinetes? Em seus aviões?
Em suas comissões e congressos e redações?
Será esta a lição que nos impõe a História: delegar sempre a realização
dos "sonhos impossíveis" ao destemor idealista dos mais jovens?
Para quem não conhece a jornalista Hildegard Angel. Ela é filha de Zuzu Angel, irmã de Stuart Angel e cunhada de Sonia Maria Angel. Todos eles assassinados pela ditadura
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