Publicamos abaixo o texto de Talita Ribeiro
que integra o Coletivo Cracolândia. Um emotivo e sincero depoimento de quem
realmente se preocupa com os usuários do crack e se levanta para que eles
tenham direitos e assistência garantidos.
Talita certamente não é uma marxista. Mas ela
está ligada humanitariamente à luta para amenizar o sofrimento daqueles que
desde cedo, muitas vezes ainda na infância, encontraram sem saber a mão
violenta e sanguinária do capitalismo, de seu estado, de suas leis, da
repressão, da fome, da deseducação e da constante frustração.
A repressão é a alma do estado capitalista e
por isso mesmo não pode corrigir algo que o próprio capital criou. Alckmin não
está interessado na saúde do povo, mas sim com a saúde do capital, com a
burguesia que ele representa.
Nosso apoio ao Coletivo e aos que resistem à
opressão e sinceramente lutam para se defenderem da violência do Estado Capitalista.
Talita Ribeiro
Todo paulistano médio
conhece a região da Luz/José Paulino/Santa Ifigênia como sendo boa para
compras, de eletrônicos ou roupas. Todo paulistano culturalmente ativo sabe que
ali há o Museu da Língua Portuguesa, a Pinacoteca e a Sala São Paulo. Todo e
qualquer paulistano não ousaria pisar lá (literalmente, a pé) depois das 22h.
Porque à noite, o comércio e a cultura são outros. E quem circula pela área não
é considerado cidadão da metrópole mais rica do país.
Quem ocupa as
esquinas, quadras e avenidas, se mistura com o lixo e divide espaço com os
ratos, que cruzam as ruas a procura de comida. À noite não há quem desvie dos
moribundos ou crianças alucinadas. E, vez em quando, se tem a impressão que não
há uma alma viva sequer, mesmo que oitenta usuários de crack estejam ocupando
uma mesma sarjeta. Até quem tenta se inserir nesse meio — por política,
trabalho ou missão — dificilmente consegue penetrar nessa outra realidade, onde
o olhar não pára, nem brilha, mas ainda busca, desesperadamente, por 8
segundos.
“De 5 a 8 segundos é o
tempo que dura o ‘barato’ do crack. Nesse curto espaço de tempo, dizem, a
sensação é equivalente a 8 orgasmos” conta um dos missionários do Cena,
que conversa com os dependentes durante a noite, para convidá-los a conhecer o
projeto e, quem sabe, embarcar numa outra viagem — a de reabilitação.
Ele circula
normalmente entre a aglomeração de usuários.
Diferente do que os
telejornais ensinam, a cracolândia não é um lugar sem leis. Religiosos são
respeitados e, muitas vezes, ignorados pela massa. Quando a polícia derrapa com
as viaturas nas ruas e saca seus (desnecessários) sprays de gás de pimenta,
todos vão para outra esquina. Quando um segurança de uma loja qualquer manda
eles saírem, o mesmo acontece. Não há sexo e violência explícita na rua. Não o
tempo todo. Não tempo suficiente para concorrer com qualquer balada de classe
média alta em uma sexta à noite. Os usuários vez em quando discutem entre si,
mas os gritos são, em sua maioria, parte da negociação de droga.
“Quem dá dois por uma
pedra? Quem tem uma nota de cinco? E um cachimbo novo?” Com frases desse tipo a
“bolsa do crack” funciona a noite inteira, com usuários pra lá e pra cá
comprando e vendendo tudo o que podem, de cigarros a 25 centavos até salsichas
vencidas achadas no lixo. Nesse mercado quase todos são compradores em
potencial, menos os que chegam em bicicletas, trazendo mais pedras em sacolas
plásticas, para fazer girar a roda da dependência. Quem não está negociando, só
pode estar consumindo, procurando restos na calçada ou tentando tirá-los do
cachimbo. Nesse ciclo nada que não tenha ligação com o crack importa. Ninguém
liga para os carrões que cruzam a região noite adentro para comprar a droga. E
não é raro ver pessoas bem vestidas e com tênis da moda fumando ao lado de
moradores de rua. Não existe mais rico ou mais pobre quando se está rente ao
chão.
Nesse contexto,
crianças de dez anos agem como se tivessem o dobro. São chamadas de “dimenor”,
mas só isso as diferencia dos demais. Com uma casca dura de sujeira preta ou
incrivelmente limpas, elas sabem o próprio nome, há quanto tempo estão nessa
vida, onde doem as feridas e, principalmente, que precisam de uma pedrinha. Os
traços infantis quase se perdem em meio a tanta opressão, mas quando pedem
ajuda para conseguir a próxima brisa, são como tantas outras crianças pedindo
um doce. E são frágeis, muito mais frágeis do que aparentam quando as olhamos
de canto de olho, andando a passos rápidos. Mas essa não é uma característica
só delas.
Os usários de crack
vistos de perto e em seu habitat, em nada lembram os retratados em telejornais.
No lugar do medo e do ódio, despertam uma tristeza imensa, acompanhada por um
sentimento de impotência. Nada que não seja a pedra parece tocá-los —
inclua aí a sua presença. Mas quem, mesmo assim, tenta se aproximar tem uma
surpresa. A mão áspera é quente, os olhos ainda lacrimejam, a voz embarga ao
contar sobre o passado, ainda há pulsação e sorrisos sinceros. Apesar de toda a
ânsia pela droga, há outros tipos de carências não supridas, tão importantes
quanto. E para tratá-las é preciso bem mais que 8 segundos. Mas isso o
paulistano ainda não sabe.
adoreeeeeei o texto,prabens
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