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30 de setembro de 2011

Enterremos Neruda, mas não sua arte!

Que fique claro que os marxistas não praticam o culto à personalidade ou o encômio (elogio) cego, como o próprio Neruda reconheceu ter feito com Stalin, ainda que não tenha jamais se retratado disso. 

Trotsky, Rivera e Breton.                          Neruda
Mario Conte


"A arte é um dos terrenos do fazer humano onde estes se revelam em suas riquezas e contradições."

Em 23 de setembro deste ano completaram-se 38 anos da morte de Pablo Neruda, nome artístico de Neftalí Ricardo Reyes Basoalto. 

Nessa data escrevi um breve artigo em memória a esse grande artista e poeta, referindo-me a ele como revolucionário. Caberia ali expor as posições políticas assumidas pelo poeta ao longo de sua vida, que demonstrariam que sua motivação inicial antifascista o levaria a apoiar ações muito próximas às que condenou, já desde a Guerra Civil Espanhola. Embora o artigo tenha caracterizado Neruda como revolucionário, suas posições e práticas políticas revelam-se verdadeiramente o contrário disso. Motivo suficiente para precisar melhor sua biografia e separá-la de sua obra poética.

A arte é um dos terrenos do fazer humano onde estes se revelam em suas riquezas e contradições. Artistas podem realizar grandes obras, sem que isso reflita em sua vida pessoal e nas atitudes práticas de seu cotidiano. A história possui grandes artistas que foram seres humanos medíocres ou, pior, notórios reacionários, usados como ponto de apoio de divulgação de regimes e ações políticas autoritárias, totalitárias e contrarrevolucionárias. Isso não diminui a grandiosidade da obra deles, nem implica que esta deva ser negada, mas também não implica que as ações e posições do artista no mundo fiquem justificadas por sua obra conter qualidade artística. Aqui segue outra contradição da arte, quando realizada e cristalizada em obra, deixa de pertencer exclusivamente ao seu autor torna-se patrimônio cultural da humanidade.

O livre acesso e ampla apropriação das obras artísticas não serão jamais possíveis em um mundo cujo sistema capitalista a tudo torna mercadoria. Esse sistema político e econômico contradiz o caráter da arte enquanto patrimônio cultural comum a todos os seres humanos. Assim como avilta direitos básicos como acesso à educação, saúde, moradia e transporte a grande maioria da humanidade.

A utilização pelo estalinismo e pela burguesia de propagandistas artistas se dá pelo fato de que enquanto figuras públicas de prestígio, as massas apresentam-se mais dispostas a ouvir suas justificativas do que a dos políticos que detém o poder. Não foi diferente com Pablo Neruda.

Aspecto central da trajetória politica de Neruda

Embora tenha entrado no Partido Comunista Chileno apenas em 15 de julho 1945, a aproximação de Neruda ao PC iniciou-se durante a Guerra Civil Espanhola, a partir de seu posicionamento inicial, antifascista e republicano. Nas palavras do próprio Neruda: “Embora eu tenha me tornado militante muito mais tarde no Chile, quando ingressei oficialmente no partido, creio ter-me definido como um comunista diante de mim mesmo durante a guerra da Espanha. Muitas coisas contribuíram para a minha profunda convicção.”

A motivação inicial, ainda na Espanha, um misto de revolta pelo assassinato covarde do poeta Federico Garcia Lorca e de solidariedade com a luta do povo espanhol, em si justas, levaram-no a avaliar a participação do PC estalinizado como positiva. Neruda, nem na época da Guerra Civil Espanhola, nem nunca em sua vida, avaliou as táticas equivocadas do PC stalinista e da Internacional como contribuições da derrota do proletariado local. Aderiu dogmaticamente e acriticamente ao PC desde o primeiro momento e nunca aceitou que houvesse uma degeneração do Estado Operário Soviético.

Em todas as suas memórias, no livro “Confesso que Vivi”, bem como em entrevistas e mesmo em conversas, sempre defendeu a URSS e o sistema soviético de forma passional. Segundo seu biógrafo Jorge Edwards, no livro “Adeus Poeta”, Neruda não permitia críticas nem mesmo em conversas informais, alterando o tom de voz contra seus interlocutores.

Sua autobiografia é repleta de contradições pela recusa a um revisionismo crítico ou aceitação de erro. Em uma passagem de suas memórias, quando fala de Zhdanov, “pai” do realismo socialista e da burocratização das artes, que levou à censura e perseguição de muitos artistas na URSS, após o domínio de Stalin, diz Neruda: “A existência de um dogmatismo soviético nas artes durante longos períodos não pode ser negada, mas também deve ser dito que este dogmatismo foi sempre tomado como um defeito e combatido frontalmente. O culto da personalidade produziu, com os ensaios críticos de Zdhanov, brilhante dogmatista, um enrijecimento grave no desenvolvimento da cultura soviética. Mas havia muita resposta em toda parte e já se sabe que a vida é mais forte e mais pertinaz que os preceitos. A revolução é a vida e os preceitos buscam seu próprio túmulo.”

A contradição patente ao assumir o enrijecimento da cultura soviética ao mesmo tempo em que tenta explicar uma resistência que nunca houve, ou foi eliminada nos muitos expurgos do partido, é uma das muitas contradições às quais se expôs o poeta ao defender intransigentemente o stalinismo e suas ações.

Da mesma forma, suas memórias, sempre que cita Stalin, tenta justificá-lo historicamente, como no trecho:
“Eu já tinha tido a minha dose de culto à personalidade no caso de Stalin. Mas naquele tempo Stalin nos aparecia como o vencedor avassalador dos exércitos de Hitler, como o salvador do humanismo mundial. A degeneração de sua personalidade foi um processo misterioso, até agora enigmático para muitos de nós.”

A ideia simplista e maniqueísta sobre Stalin como o herói que teria derrotado Hitler, oculta muito simplesmente todos os expurgos do PC soviético e a eliminação do dissenso pela violência e eliminação física, como nos processos de Moscou e nos assassinatos criminosos de todos os membros da Oposição de Esquerda do partido, na URSS e ao redor do mundo.

Desses crimes, o assassinato de Trotsky no México foi um golpe tremendo no proletariado internacional e sua organização, principalmente na recém fundada IV Internacional. Embora não tenha participado nem do atentado comandado pelo pintor David Siqueiros em maio de 1940, ou do assassinato em 20 de agosto do mesmo ano por Ramón Mercader, Neruda nunca condenou essas ações. Usou sua condição de cônsul para conseguir asilo político a Siqueiros no Chile, em um acordo com o governo mexicano e chegou a defender o assassinato publicamente como uma necessidade histórica. Esse posicionamento criou rupturas inconciliáveis, com o poeta Octavio Paz e vários intelectuais, socialistas ou não, que compreenderam melhor que Neruda o real significado desse assassinato.

As versões de sua participação no assassinato, que não constam em nenhum documento publicado sobre o caso, devem-se em grande parte às acusações de Ricardo Paseyro, que após romper com Neruda na década de 1940, iniciou um trabalho de depreciação da imagem do poeta, inclusive sabotando sua indicação para o Nobel por diversas e repetidas vezes. A não participação não apaga o fato de que Neruda sectariamente viu no assassinato um evento positivo, assim como para promover tais constrangimentos não necessitavam de forjar acusações ou calúnias. O próprio Neruda a eles se submetia ao não aceitar a degeneração do Estado Operário soviético e nunca ter lutado internamente no PC chileno para mudanças na linha adotada.

Ainda, em suas memórias, caracteriza Jorge Amado como sectário pelo ânimo quebrado ante as revelações dos crimes stalinistas pelo próprio PC soviético e abordam os anos 1952 a 1957 muito superficialmente, ignorando completamente a Revolução Húngara de 1956 contra a burocracia stalinista ainda vigente naquele país quando a revolução que foi massacrada pela intervenção de tanques soviéticos apoiados por bombardeios aéreos, deixando um saldo de 20.000 mortos, mais de 2.000 processos políticos, 350 execuções por enforcamento com mais de 200.000 pessoas abandonando o país.

Neruda opinaria, ainda que de modo vacilante, sobre a repressão à Primavera de Praga no poema “1968”:

“Por que entre tantas alegrias
Que se construíram sangrando
Sobre a neve salpicada
Pelas feridas dos mortos
E quando o sol se esqueceu
Das cicatrizes da neve
Chega o medo e abre a porta
Para que regresse o silêncio?”

(...)

“Peço perdão a esse cego
Que via e não via.”

Os marxistas e a arte

Como explicaram André Breton e Trotsky no manifesto por uma Arte Revolucionária Independente:

“A arte verdadeira, a que não se contenta com variações sobre modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades interiores do homem e da humanidade de hoje, tem que ser revolucionária, tem que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade, mesmo que fosse apenas para libertar a. criação intelectual das cadeias que a bloqueiam e permitir a toda a humanidade elevar-se a alturas que só os gênios isolados atingiram no passado. Ao mesmo tempo, reconhecemos que só a revolução social pode abrir a via para uma nova cultura. Se, no entanto, rejeitamos qualquer solidariedade com a casta atualmente dirigente na URSS, é precisamente porque no nosso entender ela não representa o comunismo, mas é o seu inimigo mais pérfido e mais perigoso.”          
(...)
A revolução comunista não teme a arte. Ela sabe que ao cabo das pesquisas que se podem fazer sobre a formação da vocação artística na sociedade capitalista que desmorona, a determinação dessa vocação não pode ocorrer senão como o resultado de uma colisão entre o homem e um certo número de formas sociais que lhe são adversas. (...) A necessidade de emancipação do espírito só tem que seguir seu curso natural para ser levada a fundir-se e a revigorar-se nessa necessidade primordial: a necessidade de emancipação do homem.
(...)
Mais que nunca é oportuno agora brandir essa declaração contra aqueles que pretendem sujeitar a atividade intelectual a fins exteriores a si mesma e, desprezando todas as determinações históricas que lhe são próprias, dirigir, em função de pretensas razões de Estado, os temas da arte. A livre escolha desses temas e a não-restrição absoluta no que se refere ao campo de sua exploração constituem para o artista um bem que ele tem o direito de reivindicar como inalienável. Em matéria de criação artística, importa essencialmente que a imaginação escape a qualquer coação, não se deixe sob nenhum pretexto impor qualquer figurino. Àqueles que nos pressionarem, hoje ou amanhã, para consentir que a arte seja submetida a uma disciplina que consideramos radicalmente incompatível com seus meios, opomos uma recusa inapelável e nossa vontade deliberada de nos apegarmos à fórmula: toda licença em arte.

Reconhecemos, é claro, ao Estado revolucionário o direito de defender-se contra a reação burguesa agressiva, mesmo quando se cobre com a bandeira da ciência ou da arte. Mas entre essas medidas impostas e temporárias de autodefesa revolucionária e a pretensão de exercer um comando sobre a criação intelectual da sociedade, há um abismo. Se, para o desenvolvimento das forças produtivas materiais, cabe à revolução erigir um regime socialista de plano centralizado, para a criação intelectual ela deve, já desde o começo, estabelecer e assegurar um regime anarquista de liberdade individual. Nenhuma autoridade, nenhuma coação, nem o menor traço de comando! As diversas associações de cientistas e os grupos coletivos de artistas que trabalharão para resolver tarefas nunca antes tão grandiosas unicamente podem surgir e desenvolver um trabalho fecundo na base de uma livre amizade criadora, sem a menor coação externa.”

Não pretendemos aqui estabelecer um tribunal de condenação ao senhor Neruda, nem tampouco justificar todos seus equívocos e omissões políticas na defesa cega de um dogma quase religioso, ao invés da emancipação humana através de práticas realmente socialistas e marxistas. Mas também não podemos nos omitir e permitir que as interpretações de um artigo breve memorialista de um poeta que contribuiu com uma obra grandiosa seja interpretado como um culto laudatório à sua personalidade.

Que fique claro que os marxistas não praticam o culto à personalidade ou o encômio (elogio) cego, como o próprio Neruda reconheceu ter feito com Stalin, ainda que não tenha jamais se retratado disso.

A necessária separação entre o homem e o artista, entre a prática política e a obra dele são a intenção deste novo e mais longo artigo. Porque sabemos que apenas uma sociedade socialista poderá garantir plena liberdade criativa ao ser humano, assim como livre acesso a toda criação humana para todos, é que continuamos nossa luta militante na prática, sem nunca defender formas de censura ou coerção, na arte ou fora dela, nós marxistas realizamos a luta resoluta pela emancipação dos seres humanos.

A lembrança da data em questão, dia da morte de Pablo Neruda, fez-se a despeito de seus muitos equívocos, pela obra que ele legou e deixou mesmo de pertencer a ele próprio. Que seus versos e poesias sobrevivam ao tempo e inspirem gerações que ainda estejam por vir, mas que seus atos sejam lembrados e que o apoio intransigente a uma burocracia contrarrevolucionária não possa ser jamais exemplo a ser seguido ou fonte de inspiração.

Esperamos que as contradições da vida desse homem e grande poeta aqui expostas, bem como as questões colocadas sobre a arte, sirvam para fomentar o debate acerca de seu alcance, limites e função, muito antes de ser uma palavra final acerca do assunto.

2 comentários:

  1. Muito bom artigo Mário. No entanto, separar o homem do artista, a prática política da obra, é cindir o homem e é preciso lutar para lhe dar unidade, mas, como vivemos sob o estigma do capital, "vivemos um tempo de homens partidos", como escreveu Drummond.
    Abraço

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  2. Não acho que o Mário tenha separado a prática política do Neruda de sua obra. Seu texto deixa claro que elas se expressam de formas diferentes. Embora a primeira seja carregada de tanta passionalidade quanto a segunda. O problema está em verificar que o humano que produziu poemas de tocante beleza formal e de conteúdo não tenha permitido que esses elementos resvalassem em ações de um homem público com importante atuação política em seu tempo. Perde o homem, perde a obra, que passa a ser lida de um outro jeito. Nós, leitores, é que podemos cindi-lo. O artista e o homem público eram uma coisa só.
    Mário, grande abraço. Acompanho seus textos há algum tempo e eles são um alento para a minha ideia de rigor na escrita. Obrigada pelas suas contribuições.

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