Wanderci Bueno
Publicamos abaixo a entrevista feita
por Gisele Brito, na Revista Forum, com
a senhora Débora que teve seu filho assassinado em maio de 2006 durante os enfrentamentos
armados supostamente ocorridos entre o crime organizado e as forças militares. Débora,
na luta pela punição dos assassinos de seu filho e de mais 492 outras
assassinadas entre o dia 12 e 20 daquele ano disse à Revista Forum: “Eu queria mostrar que a ditadura não acabou. Ela
continua até hoje. Mais dura, mais violenta. Em uma semana se matou mais de 400
pessoas, fora as outras que a gente não sabe. A ditadura durou 21 anos e matou
menos gente. Nos crimes de maio, eles mataram trabalhadores empobrecidos,
estudantes. A periferia está agonizando. O pobre está sendo exterminado no
Brasil. A população está sendo exterminada.”
A
matéria original pode ser lida também em
Por Gisele Brito
Ainda
impunes, os 493 assassinatos ocorridos naquele período mostram que métodos
utilizados na época da ditadura militar continuam atuais. E o poder público se
omite diante da injustiça.
“Quando li aquilo, eu comecei a entender o
arquivamento dos casos, do caso do meu filho. Foi muito duro. Uma carta dos
promotores do Fórum da capital, cheia de carimbos, com 58 assinaturas, dizendo
que sentiam muito pelos agentes perdidos e parabenizando o comando por ter
restabelecido a ordem.” A carta, citada de cor por Débora Maria da Silva, dizia
que os promotores paulistas “reconheciam a eficiência” da polícia e a
preocupação da corporação em “restabelecer a ordem pública violada, defendendo
intransigentemente a população do nosso estado”. Débora, de 52 anos, é mãe de
uma das 493 pessoas mortas entre 12 e 20 de maio de 2006, a maioria durante o
período classificado na carta como um retorno da ordem. Mas, para Débora e
outras mães que estão no grupo que ela coordena, e para diversas entidades de
defesa dos direitos humanos, a suposta defesa “intransigente” da população, na
verdade, foi o maior extermínio ocorrido no Brasil no século XXI. Um revide
bárbaro executado por agentes de segurança do estado de São Paulo, que
permanece impune seis anos depois.
Aquele maio a que Débora se refere
entrou para a história de São Paulo. O noticiário foi tomado de imagens de
rebeliões simultâneas em presídios, ônibus queimados, batalhões de polícia
metralhados e informações sobre a morte de agentes de segurança, entre eles
agentes penitenciários, bombeiros, guardas, policiais militares e civis. O caos
se espalhou pela capital paulista. Supostos toques de recolher fizeram com que
lojas e empresas fechassem mais cedo. No dia 15, segunda-feira após aquele fim
de semana do Dia das Mães, 5 mil dos 15 mil ônibus da frota paulistana deixaram
de circular, segundo o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana – São Paulo (Condepe). Às 18 horas, as ruas da maior cidade do país já
estavam praticamente vazias em razão do medo que tomou conta da população. Nas
primeiras 48 horas da onda de violência, 40 agentes públicos foram
assassinados, segundo relatório da Justiça Global e da Clínica Internacional de
Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard. Até 20 de maio, seriam 43.
Na época, a versão oficial divulgada
para explicar os acontecimentos informava que membros do PCC, o Primeiro
Comando da Capital, estavam promovendo os ataques em reação à transferência de
presídio de alguns de seus principais líderes, entre eles Marcos Willians
Herbas Camacho, conhecido como Marcola. Cinco anos depois, o estudo da Justiça
Global e da Faculdade de Harvard apontou que, na verdade, as razões para os
ataques foram a revolta contra esquemas de corrupção de policiais que
extorquiam famílias de membros do PCC e o sequestro do enteado de Marcola,
realizado por policiais. Justamente por isso, o título do relatório é “São
Paulo sob Achaque”, denunciando um esquema de corrupção e extorsão praticadas
por agentes públicos, que deveriam cumprir a função de defender o Estado de
Direito.
Os atentados contra agentes de
segurança promovidos pelo PCC só teriam cessado depois de um encontro, na tarde
do dia 15, entre Marcola e uma advogada e ex-delegada da Polícia Civil, que
dizia ter influência sobre a facção. A reunião foi articulada pelo governo do
estado, que inclusive providenciou um jato da Polícia Militar para transportar
a advogada, como indica o relatório da Justiça Global. No entanto, um acordo
entre o governo e a facção criminosa foi veementemente negado pelas
autoridades.
Mas assim como a maioria dos civis
mortos entre 12 e 20 de maio de 2006, o filho de Débora não morreu no período
em que predominaram as ações atribuídas ao PCC. Os relatórios mostram que a
morte de civis se intensificou a partir do dia 15, quando as ações da facção já
arrefeciam, chegando à chocante marca de 493 pessoas. Parte delas ocorreu em
supostos confrontos com a polícia, em muitos casos com indícios de adulteração
e forja de provas. Houve também casos de pessoas vítimas de grupos de
extermínio, perpetrados por homens encapuzados em carros escuros, em que também
havia sinais da participação de policiais. “Foi como se uma nuvem assassina
tivesse passado pelo estado”, relembra o médico Henrique Carlos Gonçalves,
membro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp).
O Cremesp teve um papel fundamental
para a compreensão dos fatos ocorridos naquele período. Ao tomar conhecimento
da violência que se propagava, o conselho se uniu à comissão independente
montada pelo Condepe, composta por diversos órgãos de defesa dos direitos
humanos, e acompanhou as necrópsias nos Institutos Médicos Legais (IML). “Havia
uma grande preocupação em relação às necrópsias que davam entrada. Até por
antecedentes históricos – a ditadura, mortes no Carandiru –, a perícia médica
legal foi considerada suspeita de falta de imparcialidade. Isso nos chamou a
atenção porque a perícia é um ato médico”, explica Gonçalves.
Os laudos eram checados em tempo real.
“Recebíamos um rascunho da necrópsia para garantir que não houvesse supressão
ou colocação. Só o que o perito viu ali”, relata. “Aquela imensidão de
cadáveres, parecia uma guerra. Foi muito marcante para mim. Era trágico, brutal
com a vida humana, um enorme desrespeito às leis e cidadania. Para mim, aquela
visão só se compara com o acidente da TAM [de 2007], mas com uma característica
mais degradante em função de todo o processo de violência”, lembra o médico.
A imagem que marcou o médico para
sempre é chocante, mas sua atuação valeu a pena. Graças ao trabalho feito pelo
órgão nos IMLs, foi possível constatar que 60% dos 493 corpos registrados no
período receberam pelo menos um tiro na cabeça. Quase 13% dos tiros
encontrados em todos os baleados foram dados à curta distância ou à
queima-roupa. Em 14,4% dos casos, os tiros atingiram o abdômen; em 30,5%, o
tórax e em 27,5%, a cabeça ou pescoço, regiões consideradas de alta letalidade.
Um relatório feito em 2008 pelo Laboratório
de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro chamou
atenção, ainda, para o fato de que 27% das vítimas apresentavam pelo menos um
disparo na região posterior da cabeça, “região de altíssima letalidade e muito
difícil de ser atingida em um confronto genuíno”. E 57% dos cadáveres teriam
recebido pelo menos um disparo pelas costas. Diante dessas evidências,
Gonçalves não tem dúvidas: “Dá pra dizer que foram execuções. Tiros de cima
para baixo, nas costas, em gente ajoelhada. Foi uma guerra não divulgada,
porque na guerra você não fere, não prende porque vai te dar trabalho. Na
guerra a intenção é matar, eliminar. E foi isso que ficou caracterizado”,
afirma.
Impunidade
Edivaldo Soares de Andrade, filho de
Helenita, foi morto na frente do portão de sua casa enquanto conversava com
vizinhos, no Parque Bristol, zona sul de São Paulo. Na época, Dona Helenita
contou à Fórum que assistia à TV e tinha acabado de se emocionar com
a notícia das mortes de policiais, quando ouviu tiros na rua. Seus dois filhos
foram baleados com outras duas pessoas. Apenas um deles sobreviveu. Os
atiradores estavam encapuzados, mas há indícios de que eram policiais. “Que
proteção a gente tem? Só de Deus”, declarou à Fórum em 2006. Hoje, com o
inquérito arquivado, ela diz não ter esperança de ver o caso solucionado. “Eu
não acredito, não. Quem viu tem medo de falar”, desabafa.
Segundo o defensor público Antônio
José Maffezzoli Leite, o caso de Helenita e das outras mães ouvidas pela
reportagem não são exceção. Todos foram arquivados. O inquérito do homicídio de
Edson Rogério Silva dos Santos, filho de Débora, mencionada no começo da
matéria, também foi. O rapaz, de 29 anos, trabalhava como gari na Baixada
Santista, e tinha ido com um amigo a um posto de gasolina abastecer uma moto
quando um grupo de policiais os abordou, questionando se eles estavam armados.
Conforme relatos contados a Débora, Edson respondeu que era trabalhador, e um
dos oficiais teria dito: “Morreu, você é ladrão.” Os policiais o agrediram, mas
foram embora. Edson foi para outro posto buscar gasolina, quando então foi
assassinado com um tiro no coração e um em cada pulmão. Minutos depois, uma
viatura chegou ao local do crime, mas Edson não resistiu e morreu.
Débora diz ter implorado aos delegados
que cuidaram do inquérito para que as imagens das câmeras de vigilância do
posto fossem apreendidas, o que levou meses para ser feito – e só aconteceu
quando as filmagens do dia já haviam sido apagadas. Por seu próprio esforço,
ela conseguiu demonstrar falhas nas investigações oficiais e provar que os
policiais que chegaram à cena do crime logo em seguida tinham apresentado
versões contraditórias sobre o que os motivou a ir até lá. Ela desconfia que os
homens que discutiram com seu filho, os que o mataram e os que supostamente o
socorreram são as mesmas pessoas. A participação de policiais e de grupos
parapoliciais foi reconhecida pelo promotor que cuidou do inquérito de Edson, e
ela conseguiu uma indenização do Estado, que reconheceu as falhas na investigação,
mas a autoria do crime é até hoje desconhecida, e o caso permanece arquivado.
Débora é coordenadora das Mães de
Maio, grupo que reúne mães de vítimas dos crimes de maio e luta para que a
justiça seja feita. “Eu sou uma mulher amputada. Sou um lixo humano. Tiraram
meu filho de mim. A única coisa que me sustenta é a luta”, conta. Antes da
morte de Edson, Débora não era engajada em nenhuma causa, mas a perda do filho
mudou sua vida. “Eu queria mostrar que a ditadura não acabou. Ela continua até
hoje. Mais dura, mais violenta. Em uma semana se matou mais de 400 pessoas,
fora as outras que a gente não sabe. A ditadura durou 21 anos e matou menos
gente. Nos crimes de maio, eles mataram trabalhadores empobrecidos, estudantes.
A periferia está agonizando. O pobre está sendo exterminado no Brasil. A
população está sendo exterminada.”
Depois do episódio, Débora ficou
doente, deprimida e se afastou do resto da família, mas abriu seus horizontes
para a necessidade de lutar. “Esse negócio de paz... Não existe paz se não
houver justiça. Eu digo que quem vai para a cadeia é o crime desorganizado,
porque o crime organizado está blindado, protegido pelas instituições. Debaixo
do capuz que mata está o Estado.”
A história se repete
Quatro anos depois dos crimes de maio,
outros eventos com as mesmas características acometeram a Baixada Santista.
Pelo menos 26 jovens foram mortos. Entre eles estava Marcos Paulo Soares
Canuto, filho de Flávia Gonzaga. O garoto de 18 anos foi a uma festa de
aniversário na periferia de São Vicente e, ao voltar para casa, foi abordado
por homens encapuzados. Segundo testemunhas, que não quiseram prestar
depoimento à polícia por medo de represálias, um dos homens chegou a dizer que
haviam pegado a pessoa errada, ao que o outro respondeu: “Está na chuva é para
morrer”. Marcos Paulo foi alvejado por dez tiros. O amigo que o acompanhava,
por sete.
“O meu filho não era bandido – e mesmo
que fosse. Não existe pena de morte no Brasil. Mas as pessoas ficam sempre
perguntando o que ele estava fazendo naquele bairro àquela hora, porque nós não
moramos na periferia. Quer dizer, você não pode ter um amigo em outro bairro?
Só porque ele está em um bairro afastado, pobre, ele é bandido?”, questiona.
“Ou seja, quem mora lá é marginalizado. A gente vê que a maioria dos mortos é
preto, pobre. Os ataques de abril [de 2010] só cessaram quando o Consulado
Americano pediu para que os turistas não viessem para Santos porque estava
perigoso. Daí, os prefeitos e o próprio governador disseram que a situação
estava sob controle e que os problemas só estavam acontecendo na periferia. Ou
seja, se você não mora na orla, você não vale nada”, desabafa. Assim como os
demais, o processo da morte de Marcos também está arquivado. “Se eu não correr
atrás para provar que ele foi morto pela polícia, ele vira estatística, vai ser
criminalizado. E ele não é estatística. Ele é meu filho. Metade do sangue que
derramou ali era meu.”
Débora acredita que os crimes de abril
de 2010 não teriam acontecido se os de maio de 2006 tivessem sido solucionados.
Rose Nogueira, que era presidente do Condepe naquele mês de maio, também avalia
que a impunidade em outros processos de crime e tortura no Brasil está na
origem das duas séries de crimes. “Há mais de uma centena de casos que foram
registrados como resistência seguida de morte. Como uma pessoa pode estar
resistindo com tiros na cabeça, na nuca, nas costas? Esses crimes aconteceram
porque os crimes da ditadura e os que aconteceram depois da ditadura não foram
punidos. Na ditadura, nós tivemos o esquadrão da morte, que trabalhava para a
repressão, e os agentes depois foram condecorados. Os métodos que eles usam
hoje são os mesmos da ditadura”, aponta.
Federalização
Débora explica que o movimento busca,
desde 2010, a federalização dos crimes arquivados. Esse, de acordo com
Maffezzoli, é um mecanismo recente da legislação brasileira, que permite o
deslocamento de competência para julgar crimes contra os direitos humanos. Isso
pode acontecer quando a Justiça local não tem condições para investigar o caso.
Pelas circunstâncias dos eventos de maio e de abril, os movimentos acreditam
que a Justiça paulista está dando demonstrações de que não tem interesse em
investigar a fundo aquelas mortes.
“O ouvidor federal falou para nós que
o procurador não ia pedir a federalização porque o estado de São Paulo tinha
tecnologia de primeiro mundo para tocar a investigação. Agora, vamos pedir por
escrito e denunciar para a OEA [Organização dos Estados Americanos]”, explica
Débora. “Eu temo pela minha vida, mas não tenho medo, porque não tenho mais o
que perder, o bem maior era meu filho.”
“Estou esperando ela chegar até hoje”
Depoimento de Márcia Aparecida
de Almeida Silva Ferreira, mãe de Talita Cristine de Almeida Silva, morta aos
20 anos no Guarujá, em 14 de maio.
“Era dia das mães. Estava todo mundo
bebendo, farreando na casa do meu sogro. Minha filha estava na casa da avó. Aí
eu disse que estava mal, angustiada, e meu marido e eu voltamos para casa.
Quando chegamos, tinham tocado fogo em um ônibus aqui perto. E depois tentaram
invadir a casa de um policial que morava na vizinhança. Liguei para a minha mãe
para ela impedir que a Talita voltasse para casa. Depois de 15 minutos a menina
chegou em casa, brava porque eu tinha assustado a avó.
Aí ficamos no portão conversando. Os
olhos dela brilhavam, a pele estava limpinha. Estava toda brilhosa. Eu comentei
que ela estava linda. Ela se levantou, me deu um beijo e brincou. ‘Sou filha da
Márcia, sou gostosa’. Aí um rapaz da frente chamou ela. Ele queria um celular
emprestado. Ela pediu para o irmão ir buscar. Nós entramos e ela ficou lá. De
repente, eu escutei os cinco pipocos. Parecia que era dentro de casa. Na hora,
eu botei a mão na cabeça e gritei: ‘Minha filha!’ Quando olhei, vi meu marido
gritando com a mão na cabeça no meio da rua. Ele só disse que ela e o vizinho
tinham tomado um tiro de raspão. Só depois minha filha mais velha disse que ela
não ia voltar. Ela levou dois tiros na cabeça. Eu entrei em desespero. Quase
enlouqueci.
Disseram na rua que um policial viu
tudo e só deu um tiro para cima, aí eu reclamei com ele: ‘Só atirou para cima
por quê? Era seu colega?’. Depois disso, ele foi embora do bairro. Os outros
vizinhos que viram os homens também foram embora do bairro. Eles estavam de
capuz, mas só cobriam os olhos e foram reconhecidos pelo rapaz que estava com a
Talita. Ele chegou a gritar, antes de ser baleado: ‘Pai, é o fulano!’ Mas
ninguém quer falar sobre isso, todos estão com medo. Todos os que viram foram
embora do bairro. Ninguém fez nada. Arquivaram o caso. Meu marido foi tentar
ver o inquérito e brigaram com ele: ‘O que você quer com isso depois de todo
esse tempo?’
Eu quero que seja investigado. Minha
filha não era vadia, não era suja. Mesmo que fosse, não merecia isso. Eu só
quero justiça. Eu não sou mais a mesma mulher. Eu não tenho mais paz, não tenho
mais sossego. O que eu sinto não desejo para mulher nenhuma.
A menina trabalhava. Cuidou de mim
quando eu estava doente. Era amada por todos. Ela era muito amada. Isso
destruiu minha família. Mas eu quero limpar o nome dela. A gente sabe que ela
não devia nada para ninguém. Ela tinha trabalho. Tinha 20 anos, mas era uma
criança. Eu estou esperando ela chegar até hoje para pôr ela na cama.”
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